Sinais da mudança de época. Por Marcio Pochmann

No Terapia Política

O governo da Argentina pagou ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em yuans (moeda chinesa), com base no Direito Especial de Saque (DES), a quantia referente a 2,7 bilhões de dólares. O acontecimento, ademais de inédito desde a criação do FMI em 1944, anuncia a profunda mudança de época em curso na Ordem Mundial.

Isso porque não se confirmou a expectativa trazida pelo fim da Guerra Fria (1947-1991) de um novo ciclo de expansão econômica com inclusão social, estabilidade política e paz. Com o desmoronamento da União Soviética, não se concretizou o anúncio de um “novo século estadunidense”, assentado no retorno aos anos de ouro do capitalismo, como na experiência passada no fim da Guerra Mundial, diante da derrota do nazifascismo.

Após quase quatro décadas da globalização liderada pelos Estados Unidos, a ilusão foi desfeita. A prevalência da unipolaridade e unilateralidade como governança neoliberal do mundo fez valer o crescente poder das altas finanças e das grandes corporações transnacionais.

Com isso, uma espécie de neocolonização financeira e extrativa da natureza foi posta em marcha no mundo com elevada expropriação do trabalho humano. Pelo Consenso de Washington (1989), por exemplo, a desindustrialização no Ocidente avançou de forma compatível com o esvaziamento da capacidade de governança interna em grande parte dos países, cada vez mais subordinados aos ditames dos donos do dinheiro.

As próprias instituições multilaterais do sistema das Nações Unidas foram enfraquecidas e desconectadas da atuação para a qual foram constituídas ainda no segundo pós-guerra mundial. Ao mesmo tempo, deu-se o reaparecimento de uma outra Divisão Internacional do Trabalho amplamente apoiada na precarização do mundo do labor.

Simultaneamente, a generalização da combinação das dívidas financeiras com a difusão das privatizações tornou os EUA uma economia de elevado custo. O resultado foi a própria desindustrialização interna, o que lhe retirou a posição de liderança industrial, comparável ao declínio do Reino Unido ocorrido desde o final do século 19.

Assim, o encerramento da fase de expansão produtiva foi sucedido pelo ciclo de ganhos financeiros (juros, lucros de investimentos estrangeiros e créditos dos bancos centrais a inflar ganhos de capital). Sem gerar riqueza assentada no trabalho pelo complexo industrial, coube à globalização unipolar e unilateral operar com a forma financeira neocolonial em paralelo ao uso recorrente de forças militares e dos esquemas de cancelamentos e sanções econômicas.

Para além das questões econômicas, financeiras e comerciais referentes à gestão conjuntural e emergencial no conjunto dos países da atualidade, emergiu como centralidade a estruturação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho em plena Era Digital. O avanço do processo de digitalização das economias e sociedades conduz à separação do mundo em dois agrupamentos distintos de países.

De um lado, as nações que produzem e exportam bens e serviços digitais. De outro, os países que dependem fundamentalmente das importações de bens e serviços digitais, pois os consomem sem produzi-los internamente.

Na maior parte das vezes, as economias importadoras de bens e serviços digitais terminam financiando o consumo moderno com a produção e exportação de commodities minerais e vegetais. Isso muitas vezes é combinado à pobreza e baixos salários de ampla parcela da população com a intensa agressão ao meio ambiente.

Por ser de maior valor agregado e conteúdo tecnológico, a produção de bens e serviços digitais tem concedido aos países exportadores maiores vantagens comparativas no comércio internacional. Isso tem ocorrido, muitas vezes, devido à deterioração dos termos de troca que impulsiona o deslocamento de renda e riqueza gerada pela estrutura produtiva primário-exportadora dos países importadores aos exportadores de bens e serviços digitais.

Com isso, o curso da Divisão Internacional do Trabalho se assenta no retomo às condições de produção e reprodução do subdesenvolvimento. Pelo deslocamento do antigo centro dinâmico do Ocidente para o Oriente, acontece a reconfiguração periférica dos países em novas bases, permeada pela desigualdade econômica e pela emergência climática.

Nos dias de hoje, contudo, a prevalência do enorme desequilíbrio relacionado à repartição da renda, riqueza e poder se relaciona ao avanço da própria desordem em dimensão global. O seu enfrentamento, ademais de urgente, precisa ocorrer em nova base geopolítica e econômica mundial.

Isso dificilmente ocorrerá de forma espontânea. A redefinição geopolítica é parte das tarefas que o BRICS pode e deve perfeitamente conduzir neste final do primeiro quarto do século 21. Para tanto, o desenvolvimento deve ser alcançado sem que se reproduza de forma desigualmente combinada.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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